DESMISTIFICANDO O SABER GEOGRÁFICO COM YVES LACOSTE

Yves Lacoste. Fonte: Wikimedia.
O francês Yves Lacoste foi um dos vanguardistas responsáveis por uma transição epistemológica na Geografia, sobretudo nos anos 1970, culminando na Geografia Nova ou Crítica. Tal transição se baseou numa reaproximação à sociologia e a história (em menor grau também à filosofia), especialmente às ideias e aos questionamentos de caráter marxista desenvolvidos por essas disciplinas ao longo do século XX. Consistindo, essa geografia renovada, como um verdadeiro esforço em reinterpretar a realidade espacial do mundo pela ótica dos conflitos sociais e econômicos nas suas mais variegadas formas e escalas (GODOY, 2010). 

Um dos marcos desse momento histórico acontece com a publicação da obra A Geografia, Isso Serve em Primeiro Lugar Para Fazer a Guerra de Yves Lacoste, em 1976. Tal obra escandalizou e atordoou a comunidade acadêmica da época com título tão provocativo e com um conteúdo verdadeiramente revelador e ousado, tornando-se uma das bases das discussões sobre o papel e os objetivos do geógrafo até os dias de hoje. Um dos temas nucleares dessa obra trata, justamente, de discutir para que serve, de fato, a geografia e é exatamente nessa questão que se revela a face oculta desse saber, seu papel político-ideológico...

Figura 1: Heródoto aponta um revólver com silenciador para o globo terrestre. Ilustração de Wiaz para a capa da 9ª edição do livro A Geografia, Isso Serve em Primeiro Lugar Para Fazer a Guerra. Fonte: Livraria Leitura.





















Para Yves Lacoste (2005), a Geografia, é uma área do conhecimento (científico ou não, isso, para ele, pouco importa) que aparece ao longo da história como instrumento de exercício e manutenção do poder. Ela é levada ao seu paroxismo e exagero pela expressão da guerra. Nesse sentido, o geógrafo incorpora um papel político-estratégico subordinado ao Estado ou a qualquer outra instituição/estrutura significativamente influente, onde o território e a sociedade são compreendidos com o objetivo final de dominação, controle, previsão e estabilização.

Esse saber geográfico de caráter político-estratégico foi ao longo do tempo considerado como uma técnica e um saber privilegiado, que proporcionaria vantagens, políticas, econômicas e militares, de uns (Estados, corporações, etc.) sobre outros. Portanto a verdadeira natureza dessa geografia não poderia ser massificada, mantendo-se tal conhecimento como um sigiloso monopólio das elites. Trata-se do que o autor chamará de a “Geografia dos Estados-maiores” e que existe há milhares de anos, desde as formações dos primeiros conglomerados políticos dotados de instrumentos militares e de desejos de dominação e extensão do poder (LACOSTE, 2005). 

Por outro lado, uma segunda forma de geografia passou a ser reproduzida nas instâncias educativas da sociedade, sobretudo em estados autoritários e totalitários. Tratava-se de uma geografia meramente enciclopédica e descritiva que servia, em um primeiro momento, como um dispositivo mistificador do espaço e de seus conflitos latentes, culminando em um discurso ideológico de viés nacionalista, que favorecia a manutenção hegemônica de determinado grupo político. Uma geografia que aparentemente se mostrava ingênua e mesmo enfadonha, mas que, em essência, era totalmente estratégica, pois neutralizava o seu verdadeiro valor, além de dissimular as possibilidades políticas a qual poderia servir. Essa aparência de neutralidade e inutilidade a qual se revestia a geografia lhe tornava incólume a qualquer forma de crítica: assim, segundo Lacoste, um discurso ideológico, político e bastante delicado era transmitido como um discurso pedagógico inofensivo e grácil.

Essa geografia, fazendo-se uso da cartografia e das paisagens, servia para exaltar a nação, suas fronteiras, conquistas, riquezas, benesses e potencialidades, ao passo que menosprezava ou simplificava outras culturas e nações, tornando-as exóticas e carentes de ajuda, o auge disso pode ser observado nos Estados Unidos do século XX, especialmente nos períodos das grandes guerras e da Guerra Fria (LACOSTE, 2005). Tal momento está especialmente associado com a expansão do neocolonialismo, onde uma intensa “propaganda geográfica” foi popularizada para justificar a ação militar, política e ideológica dos Estados Unidos pelo mundo a fora. Essa geografia, portanto, justificava a supremacia de determinada nação ou grupo de nações sobre outras e ao mesmo tempo apresentava argumentos que naturalizavam a guerra como um mal necessário, e a colonização e dominação como uma virtude que favorecia os dominados a se civilizarem e a se desenvolverem nos virtuosos moldes ocidentais, de modo a torná-los passíveis da influência externa. 

Tal propaganda ideológica foi também semeada meticulosamente nos países explorados junto a um amplo conjunto simbólico disseminado pelas potências a fim de se domesticar cultural e politicamente tais nações, tornando-as passivas e tolerantes a influência imperialista, facilitando a branda exploração dessas nações em prol das novas potências mundiais. Trata-se do que veio a se chamar de neocolonialismo (DORFMAN; MATTELART, p. 66, 1977).

Por Anderson Rodrigo Pereira da Graça


REFERÊNCIAS:


DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1977. Tradução de Alvaro de Moya.

GODOY, Paulo R. Teixeira de (Org.). História do Pensamento Geográfico e Epistemologia em Geografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

LACOSTE, Yves. A geografia - isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra. 9. ed. Campinas: Papirus, 2005. Tradução de Marília Cecília 
França.


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