Terras Devolutas e Latifúndio: um breve resgate sobre o espaço agrário brasileiro!

Por Rafael da Silva Tangerina

O primeiro critério de distribuição do solo da colônia portuguesa na América foi o regime de concessão de Sesmarias. Este ordenamento jurídico do território foi, antes de mais nada, uma transposição da norma reguladora do processo de distribuição de terras em Portugal para os solos coloniais. Sob este ponto, é preciso ressaltar que o interesse principal do processo de colonização portuguesa estava aliado a extensiva exploração do território, com o intuito de campear os recursos minerais, principalmente o ouro.

O Regime de Sesmarias foi transplantado da metrópole para a colônia,sendo que a concessão de sesmarias consistia na doação gratuita de terras em abundância a quem tivesse meios de cultivá-la. O sistema sesmarial, imaginado para solucionar uma crise de abastecimento no reino português, tinha uma preocupação acentuada com a utilização produtiva da terra atrelada ao seu cultivo; no entanto nunca enquanto durou o regime de sesmarias, conseguiu a metrópole impedir a formação de latifúndios improdutivos. Além daquela utilizada efetivamente de forma produtiva, grandes extensões de terra eram apropriadas para explorações futuras. Este hábito ocorria devido o caráter predatório da agricultura que se aplicava na colônia, que esgotava rapidamente o solo e era possível graças à incapacidade da metrópole de exercer um controle estrito sobre a colônia. Nenhum dos mecanismos utilizados pelas autoridades coloniais fez reverter esse processo. Na realidade, o aumento das exigências que cercavam a concessão de sesmarias (medição, demarcação, confirmação, etc.) serviu para que os colonos não regulamentassem suas situações e antes mesmo da Independência já estava decretado o fim do sistema sesmarial. 

Portugal cedeu a terra a quem quisesse e pudesse cultivá-la, mas a parte da  legislação que proibia o latifúndio improdutivo nunca foi aplicada. Mesmo assim, não podemos justificar e atribuir a este sistema a causa da persistência do latifúndio improdutivo em épocas posteriores. A continuidade do padrão de exploração tanto da terra como da mão-de-obra resultaram num aumento exorbitante dos latifúndios improdutivos.

A partir do séc. XVIII, há um enorme crescimento da colônia junto a um grande ciclo migratório. Verificou-se uma ampliação da economia devido, principalmente, à descoberta das Minas Gerais. O ciclo do ouro foi capaz de dinamizar outros setores da economia, como o de produção de alimentos e o do tráfico interno de mão-de-obra. A reivindicação pela terra se tornava cada vez mais comum e a política de doação por meio de sesmarias fazia-se insuficiente às novas necessidades sociais.

No início do séc. XIX, a questão da posse da terra tinha alcançado uma situação caótica, não existia um ordenamento jurídico que possibilitasse qualificar quem era ou não proprietário de terras no país. Foi quando o Estado imperial elaborou a primeira legislação agrária de longo alcance, que ficou conhecida como a Lei de Terras de 1850. Esta representou uma tentativa dos poderes públicos de retomar o domínio sobre as terras chamadas devolutas (desapropriadas pelo Estado).

Percebe-se que a motivação principal da adoção da lei estava nos desdobramentos da cessação do tráfico de escravos e no desejo de estimular a emigração estrangeira.

A lei de 1850 não atingiu um dos seus objetivos básicos, a demarcação das terras devolutas, ou seja, a separação das terras públicas e privadas que seria o primeiro passo para a implantação de uma política de terras. E isto por dois motivos. Primeiro porque a regulamentação da lei deixou a cargo dos ocupantes das terras a iniciativa do processo de delimitação e demarcação. Só depois que os particulares tivessem declarado ao Estado, medindo e demarcando, as terras que ocupavam é que este deduziria o que lhe restara para promover a colonização. Em segundo lugar, a lei não foi suficientemente clara na proibição da posse. 

Os desdobramentos deste efeito da lei de 1850 não seriam necessariamente negativos caso não tivessem beneficiado quase que exclusivamente os grandes proprietários rurais e servissem para democratizar o acesso à terra.

Com a República e a passagem das terras devolutas para o domínio dos estados, agravou-se ainda mais os efeitos da lei de 1850, pois foram pouquíssimas as iniciativas no sentido do estabelecimento de uma política de colonização ou assentamento que contrabalançasse a proliferação dos latifúndios improdutivos. Protegidos pela aplicação da cláusula que garantia as posses (cultura efetiva e morada habitual), multiplicaram-se os grilos e continuou o processo de passagem das terras devolutas para o domínio privado, sem controle dos poderes públicos e sem que estes manifestassem grande preocupação com o anti-social das terras apropriadas. A situação social no campo, neste período, caracterizada pela presença do coronelismo garantiu a permanência do modelo de apropriação territorial.

A promulgação do Código Civil fez aparecer  uma corrente de juristas que defendiam a possibilidade do usucapião das terra públicas, o que significava na prática, a derrubada do artigo 1º da lei de 1850 que continuava em vigor. Esta corrente dizia que o Estado era um proprietário como outro qualquer diante das suas terras, sujeito portanto ao usucapião. Nesse sentido e em muitos outros, a lei era ambígua, porque tratava-se de operar a transição de um sistema concessionário de doação de terras (sesmarias) para um sistema de propriedade plena.

O fato é que uma vez expedido o título de propriedade, o Estado só poderia recuperar terras e dar-lhes outro destino através da desapropriação. Como a lei foi servindo ao longo dos anos para regularizar a situação dos grandes posseiros latifundiários, e transformá-los, portanto, em proprietários de pleno direito, a única forma de recuperar as terras improdutivas passou a ser a desapropriação, quase nada utilizada em relação aos latifúndios.

Caracterizar todo o processo que envolve a elaboração, bem como a aplicação da Lei de Terras de 1850, é um trabalho sistemático que envolve não somente as questões agrárias, mas todo um contexto de redefinição da política externa comercial e a reestruturação do mercado interno de trabalho, ou seja, a transição do uso da mão-de-obra escrava para o trabalho livre assalariado (principalmente o imigrante), bem como o controle do Estado Imperial sobre as demais terras devolutas. De uma ampla análise histórica, devemos levar em conta a ocupação e produção da terra como reflexo das necessidades vigentes a cada época: no início da colonização, tratava-se de uma política determinada pelo Rei no efetivo da ocupação e produção de bens; mas logo essa ocupação de terras tomou rumos comerciais que sobrepuseram as demais intenções. Na transição da Colônia para o Império, através da cana de açúcar juntamente com o crescimento da própria colônia, bem como seu mercado interno consumidor; e por último, seu desfecho em 1850 com a Lei de Terras, que por si já demonstrava a força dos produtores de café.

A Lei de Terras representava para o Estado Imperial um dos vértices de consolidação do Estado Nacional e um espaço de relacionamento entre proprietários e Estado. A transição da posse para a propriedade é o elemento chave em nossa compreensão, pois o Estado Imperial visava apropriar-se das terras devolutas, que vinham passando de forma livre e desordenada ao patrimônio particular, juntamente com a aplicação da mão-de-obra livre imigrante em contraposição à escravidão. Sendo assim, atingiam-se dois objetivos com apenas uma resolução. Porém, o que vimos foi que o trabalho imigrante substituiu em uma boa parte o trabalho escravo, não em função da Lei de Terras, mas pela própria adaptação e demanda da produção do café, pois a posse aleatória das terras não havia mudado de forma como se previa, persistindo até as primeiras décadas de nosso século, bastando citar que foram criadas medidas adicionais a lei para que se perpetuasse o regime de posse dando a esta um viés de legalidade, visto que a resolução do problema era mais difícil que o esperado. Persistia a passagem de terras devolutas para o domínio privado.

Temos que destacar ainda que existe uma facção de posseiros que Lígia Osório cita como grandes proprietários de terras e produtores de café, mandioca, algodão, açúcar, entre outros. Pequenos lavradores sem recursos mantiveram-se alijados ou postos em segundo plano no processo de apropriação legal da terra. O não acesso à propriedade para uma grande parte da população irá garantir ao Estado Republicano um grande contingente de mão-de-obra.

Por fim, é no início do século XIX, com a passagem da terra como meio produtor para o status de mercadoria, bem como a barreira que se erguia entre a posse e propriedade, aliados às exigências do mercado internacional (Inglaterra), é que percebemos o caminho que se traçava para a criação da Lei de Terras de 1850, sendo elaborada como parte de um projeto que visava abranger toda a sociedade “mas a sua aplicação à sociedade foi o resultado de um processo no qual as diferentes camadas sociais interessadas entraram em conflito e encontraram os meios de acomodar o ordenamento jurídico aos seus interesses” (SILVA, 1996, p.337).

Nesse longo período histórico ao qual as diversas leis se aplicaram, o fator constante é a ausência da participação dos principais interessados (os que precisam das terras para sobreviver); sempre ficaram fora do processo, forçados a isso pela repressão política ostensiva. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) neste aspecto é uma novidade; pela primeira vez os que visam a disseminação da pequena propriedade, através da destinação de terras públicas para este fim. E cresce o consenso de que a reforma agrária é uma necessidade para o trabalhador tanto do campo como da cidade. Os séculos de história de legislação agrária ensinam que a democratização do acesso à terra não se fará sem a pressão e a colaboração dos maiores interessados.


REFERÊNCIAS:

SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio – efeitos da lei de 1850. Ed. Unicamp, Campinas,1996.

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