De quem é a cidade?

Por Rafael da Silva Tangerina

O debate acerca do território e da territorialidade, no seio da “problemática urbana”, vem sendo colocado em relevo pelos geógrafos. Enquanto categoria de análise da Geografia, o território tem se constituído, nos últimos anos, como um dos seus conceitos-chave (CORRÊA, 1995). Para HAESBAERT (1997), a retomada desse conceito, por autores de outras áreas do conhecimento, trouxe importantes contribuições ao debate e tem sido uma demonstração de sua relevância na atualidade. 

O termo território possui vários significados,  podendo denominar um espaço social qualquer, como é entendido no senso comum e, entre alguns geógrafos, como um espaço delimitado enquanto um espaço de sobrevivência. Pode, ainda, ter um sentido totalmente abstrato, como o “território da filosofia”, quanto muito concreto, o “território dos Estado-nações”, (HAESBAERT, 1997).

RIBEIRO (2002, p.10) nos esclarece que, a partir dos anos 80, a noção de território “foi resgatado na Geografia, em diferentes escalas, mas principalmente na escala interna da cidade em decorrência da identidade das minorias étnicas, religiosas e sexuais, entre outras, conformando novos arranjos espaciais, tendo como matriz as diferenças culturais”. 

O especialista no tema, Rogério Haesbaert, destaca que todo grupo se define essencialmente pelas ligações que estabelece no campo, tecendo seu laços de identidade na historia e no espaço, apropriando-se de um território (concreto e/ou simbólico), onde se distribuem os marcos que orientam suas práticas sociais. 

Para nós, o fundamental é discutir a variabilidade e a conjunção desta dinâmica identitária espacial no contexto da modernidade. Assim, se os diferentes grupos (e/ou classes) sociais que formam o tecido da metrópole necessitam de um território como base de afirmação, como isto acontece nesta realidade de permanente mudança? (HAESBAERT 2002, p.93).
Segundo o autor, cada grupo se faz seguindo seus signos de referência, que são, ao mesmo tempo, excludentes dos demais, de tal modo que seria possível imaginar o estabelecimento de matrizes interconectadas que associassem códigos sociais e determinados códigos urbanos. Nem só em guetos, portanto, cria-se a segmentação. Mesmo que dispersos em determinada área geográfica e sem a conotação explícita da segregação, podem-se formar grupos identitários na metrópole. Vivendo sob determinados signos como o vestuário, o código verbal, as aspirações sociais etc. Seus atributos não só uma controlada e relativa dispersão espacial, como também indicam que esta dispersão constitui a própria afirmação de seu prestígio (HAESBAERT 2002 p.94-5).

Além de garantir o espaço da reprodução social, é preciso conquistar e/ou garantir outros, como em uma estratégia de guerra. A grande arma das metrópoles são as áreas ainda efetivamente comuns, públicas, “desocupadas”. Nestas são traçadas as verdadeiras campanhas táticas informais de ocupação e domínio. Praças, ruas e equipamentos diversos de lazer e serviços são o território onde ocorrem ofensivas e retiradas, onde se alternam controles e normas próprias a cada grupo (HAESBAERT, 2002 p.98). Para SANTOS (1994, p. 10) “a grande cidade se torna o lugar de todos os trabalhos, isto é, o teatro de numerosas atividades “marginais”(...).

Nesta mesma linha de raciocínio SOUZA (1995, p. 87) afirma que:

As grandes metrópoles modernas mundiais com suas complexidades contêm exemplos desse tipo de “territorialidades flexíveis”. Podemos citar os territórios da prostituição feminina ou masculina (prostitutas, travestis, michês), onde os “outros” tanto podem estar no mundo exterior em geral  (de onde vêm os clientes em potencial) quanto, em muitos casos, em um grupo concorrente (prostitutas x travestis), com os quais se pode entrar em conflito.

Segundo SOUZA (1995), um outro exemplo de formação de territórios é encontrado nas cidades - as feiras livres ou camelôs. O mesmo autor cita outro tipo de territorialidade extremamente importante: o domínio de territórios pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro. 

A metrópole é, nesse sentido, o lócus das disputas territoriais das distintas “tribos” que compõem (MAFFESOLI, 1987 apud in HAESBAERT 2002 p.99). Essa variabilidade espacial e temporal de usos e a ambigüidade daí decorrente são os maiores motivos do fracasso dos planos urbanísticos e das grandes cirurgias “organizativas”. O autor salienta que os espaços assim projetados apresentam “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. 

Para RIBEIRO (2002, p. 89) a cidade se fragmenta em diversas territorialidades de excluídos pela sociedade, formando um verdadeiro “caleidoscópio”, onde coexistem diferentes territórios: de catadores de papel, dos sem-teto, das crianças de rua, dos guardadores de carro, conhecidos como “flanelinhas” (ver vídeo abaixo), entre outros, superpostos, na maioria das vezes, com os da prostituição, constituindo verdadeiros “territórios do medo”, em decorrência da violência praticada pelos diversos grupos atuantes nesses territórios, bem como da ação da polícia. 






REFERÊNCIAS:

CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço: um conceito-chave da Geografia. In: CASTRO, Iná Elias de. et alli. (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1995.

HAESBAERT, R. Territórios Alternativos. Niterói: EDUFF; São Paulo: CONTEXTO, 2002. 

MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do indivíduo nas sociedades de massa. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1998. 232p.

RIBEIRO, M. Territórios da Prostituição de Rua na Área Central do Rio de Janeiro. IN: RIBEIRO,  Miguel Ângelo (Org.). Território e Prostituição na Metrópole Carioca. São João do Meriti, Rio de Janeiro: Ecomuseu Fluminense, 2002.

SANTOS, M. A urbanização brasileira. 2 ed. São Paulo, Hucitec, 1994.

SOUZA, M.J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de. GOMES, Paulo Cesar da Costa e CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

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